Diz uma história que numa cidade apareceu um circo, e que entre seus artistas havia um palhaço com o poder de divertir, sem medida, todas as pessoas da platéia e o riso era tão bom, tão profundo e natural que se tornou terapêutico.
Todos os que padeciam de tristezas agudas ou crônicas eram indicados pelo médico do lugar para que assistissem ao tal artista que possuía o dom de eliminar angústias.
Um dia, porém, um morador desconhecido, tomado de profunda depressão, procurou o doutor.
O médico então, sem relutar, indicou o circo como o lugar de cura de todos os males daquela natureza, de abrandamento de todas as dores da alma, de iluminação de todos os cantos escuros do nosso jeito perdido de ser.
O homem nada disse, levantou-se, caminhou em direção à porta, e quando já estava saindo, virou-se, olhou o médico nos olhos, e sentenciou:
“não posso procurar o circo… aí está o meu problema : eu sou o palhaço”.
Como professor, vejo que, às vezes, sou esse palhaço, alguém que trabalha para construir os outros e não vê resultado muito claro daquilo que faz.
Digo isso, até em tom de desabafo, porque vejo que cada dia mais meus alunos se gabam de desonestidades.
Os que passam os outros para trás são heróis e os que protestam são otários, idiotas ou excluídos, é uma total inversão dos valores.
Vejo que alguns professores partilham das mesmas idéias, e as defendem em sala de aula e na sala de professores e se vangloriam disso.
Essa idéia vem me assustando cada vez mais, desde que repreendi, numa conversa com alunos, o comportamento do cantor Zeca Pagodinho, no episódio da guerra das cervejas e quase todos disseram que o cantor estava certo, tontos foram os que confiaram nele.
“O importante professor é que o cara embolsou milhões”, disse-me um; outro: “daqui a pouco ninguém lembra mais, no Brasil é assim, e ele vai continuar sendo o Zeca, só que um pouco mais rico”, todos se entreolharam e riram, só eu, bobo que sou, fiquei sem graça.
O pior é quando a gente se dá conta de que no Brasil é assim mesmo, o que vale é a lei de Gérson: “o importante é levar vantagem em tudo”.
(Lei de Gérson… dá para rir…)
A pergunta é: Sem trabalho produtivo é possível, usando a lógica, que todo mundo ganhe ? Sem o trabalho honesto, para alguém ganhar é óbvio que alguém deverá perder.
A lógica é guardar o troco a mais recebido no caixa do supermercado;
é enrolar a aula fingindo que a matéria está sendo dada;
é fingir que a apostila está aberta na matéria dada, mas usá-la como apoio enquanto se joga forca, batalha naval ou jogo da velha;
é cortar a fila do cinema ou da entrada do show;
é dizer que leu o livro, quando ficou só no resumo ou na conversa com quem leu;
é marcar só o gabarito na prova em branco, copiado do vizinho, alegando que fez as contas de cabeça;
é comprar na feira uma dúzia de quinze laranjas;
é bater num carro parado e sair rápido antes que alguém perceba;
é brigar para baixar o preço mínimo das refeições nos restaurantes universitários, para sobrar mais dinheiro para a cerveja da tarde;
é arrancar as páginas ou escrever nos livros das bibliotecas públicas;
é arrancar placas de trânsito e colocá-las de enfeite no quarto;
é trocar o voto por empregos, pares de sapato ou cestas básicas;
é fraudar propaganda política mostrando realizações que nunca foram feitas.
Essa é a lógica da perpetuação da burrice.
Quando um país perde, todo mundo perde.
E não adianta pensar que logo bateremos no fundo do poço, porque o poço não tem fundo.
Parafraseando Schopenhauer: “Não há nada tão desgraçado na vida da gente que ainda não possa ficar pior”.
Se os desonestos brasileiros voassem, nós nunca veríamos o sol.
Felizmente há os descontentes, os lutadores, os sonhadores, os que querem manter o sol aceso, brilhando e no alto.
A luz é, e sempre foi, a metáfora da inteligência.
No entanto, de nada adianta o conhecimento sem o caráter.
Que nas escolas seja tão importante ensinar Literatura, Matemática ou História quanto decência, senso de coletividade, coleguismo e respeito por si e pelos outros.
Acho que o mundo (e, sobretudo, o Brasil) precisa mais de gente honesta do que dos pseudo literatos, historiadores ou matemáticos.
Ou o Brasil encontra e defende esses valores e abomina Zecas, Gérsons, e todos os marketeiros que chamam desonestidades flagrantes de espertezas técnicas, ou o Brasil passa de país do futuro para país do só furo.
De um Presidente da República espera-se mais do que choro e condecoração a garis honestos, espera-se honestidade em forma de trabalho e transparência.
De professores, espera-se mais que discurso de bons modos, espera-se que mereçam o salário que ganham (pouco ou muito) ministrando a honestidade.
A honestidade não precisa de propaganda, nem de homenagens, precisa de exemplos.
Quem plantar joio, jamais colherá trigo.
Quando reflexões assim são feitas, cada um de nós se sente o palhaço perdido no palco das ilusões.
A gente se sente vendendo o que não pode viver, não porque não mereça, mas porque não há ambiente para isso.
Quando seria de se esperar uma vaia coletiva pelo tombo, pelo golpe dado na decência, na coerência, na credibilidade, no senso de respeito, vemos a população em coro delirante gritando “bis” e, como todos sabemos, um bis não se despreza.
Então, uma pirueta, duas piruetas, bravo ! bravo ! E vamos todos rindo e afinando o coro do “se eu livrar a minha cara o resto que se dane”.
Enquanto isso, o Brasil de irmã Dulce, de Manuel Bandeira, do Betinho, de Clarice Lispector, de Chiquinha Gonzaga e de muitos outros heróis anônimos que diminuíram a dor desse país com a sua obra, levanta-se, caminha em silêncio até a porta, vira-se e diz:
“Esse é o problema… eu sou o palhaço”
Enviado pela professora Eroni Martins, de Santa Rosa do Sul-SC para o Colunista Moacir Pereira. O texto foi publicado neste sábado no blog do Colunista